sábado, 21 de novembro de 2009

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O professor e escritor Airton Sampaio simplesmente critica o mal feito que se faz no Piauí. O mal, o pior, os doentes na política e os sintomas graves na nossa literatura. É fácil enxergar o que ele diz, mas difícil para tapados acomodados aceitarem a crítica apurada.

Na Sala de Aula


CHICLETES

Luisa caminhava lentamente, preocupada com a tarefa não feita. Inventar outra desculpa: "professor, tô de caderno novo", ou "fui ao centro fazer compras com a mamãe". Não ia mais colar. Ele olha no olho da gente e vê que tem mentira. O pior é que ele sempre tem uma piadinha para cada desculpa: "caderno novo, coitado do velho, nunca mais vem à escola". A Aninha foi cair na besteira de dizer que não tinha feito a tarefa porque tinha ido pra casa da avó dela que tava doente, aí o professor perguntou se ela não tinha encontrado o lobo mau no meio do caminho. Mas o pior foi a Zélia. Também, a burra foi dizer que não tinha feito a tarefa porque havia chovido. E a turma, claro, nem esperou ele perguntar se a chuva tinha alagado a tarefa dela. Caíram todos na gargalhada. Fiquei com pena da Zélia.
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Levantou os olhos e avistou Carlinhos. Acelerou o passo para a salvação.
-- Carlinhos, espera! Gritou.
O menino ajeitou os óculos para ver a amiga correndo, arrastando a pesada mochila escolar. Chegou até ele, ofegante.
-- Respira um pouco, estamos atrasados, disse ele.
-- Pega um chiclete, ofereceu a menina.
-- Não quero mais chiclete.
-- Por quê?
-- Todo adulto briga. Minha mãe, tia, professora e aquele professor vive dizendo que tem bosta de porco na bula do chiclete. Chega, não quero mais chiclete.
-- Fica assim mesmo, guarda, é só um chiclete.
-- Além do mais cor-de-rosa, pega mal, se os panacas da escola me verem, vão me encher o saco.
A menina sorriu, estendendo a delicada mão onde pequenos dedos apertavam o chiclete macio. Carlinhos aceitou e guardou no bolso. Depois continuaram o caminho da escola.
-- Não fiz a tarefa.
O menino não viu desespero na fala dela.
-- Você não me ouviu, não fiz a tarefa.
-- Estamos atrasados, minha mãe vai me chatear porque não cheguei à escola na hora.
-- Dá tempo copiar, vai sujar comigo?
O menino tirou o caderno da mochila e o entregou a Luísa. Ela soprou aliviada, sentou ali mesmo na calçada e abriu sua mochila a procura do caderno.
-- Me dá cobertura, mastiga o chiclete, disse ela.
-- Pra quê?
-- Vai começar de novo?
-- Acho bom você se levantar, estou vendo o carro do professor, vai passar por nós.
-- Merda!
A menina se levantou depressa e eles continuaram o caminho pela calçada. Adiante o carro parou. O professor baixou o vidro.
-- Estão atrasadas, crianças, entrem no carro.
Eles se entreolharam. Luísa xingou o silêncio e o menino deu de ombros.
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Na sala de aula Carlinhos mordia ferozmente o chiclete que ganhou de Luísa. Hoje acerto contas com eles, pensava. O chiclete estava na liga perfeita, mastigava agora de maneira vulgar, para ser percebido; soprou uma bola que estourou no ouvido da professora. Conseguiu o que queria, a professora mandou o menino esvaziar a boca. Foi ao banheiro. Saiu verificando os corredores e pátio da escola. Estava limpo. Atravessou, sob sol agonizante, a quadra de esportes, vazia àquela hora da manhã. Adiante encontrou a "floresta", como chamavam os alunos. Era uma pequena reserva de árvores caatingueiras, preservadas no espaço onde construíram a escola. Chegou no local que lhe era familiar, retirou as folhas do galho de um arbusto e estendeu o chiclete no pequeno galho pelado. Era o "visgo", armadilha fatal para passarinho. Assoviou imitando um pássaro e partiu em correria, a professora já devia sentir sua falta.
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-- Onde você foi, perguntou Luísa.
-- Fazer uma visita.
Campainha de saída bateu. Ansioso e preocupado em ser visto, retornou à "floresta". Mas estava sendo seguido. A armadilha deu certo, capturou não só um, mas um casal de canários. Nervoso de emoção, sentiu suas mãos gigantes ao prender um dos pássaros. Abriu cuidadosamente um bolso na mochila e já ia metendo o canário quando um estouro o assustou. Olhou para trás e viu Luísa, mascando chiclete, assistia toda a operação.
-- Tá vendo, o canário fugiu!, reclamou o menino.
-- Melhor soltar o outro, fui intimada à diretoria pedagógica por causa da tarefa, aproveito para lhe denunciar.
Sem falar nada, Carlinhos libertou o outro canário. Colocou a mochila nas costas e saiu na frente, não queria conversa. Atrás dele, Luísa gritou:
-- Carlos, tava certo em não querer mais chiclete!
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f wilson